quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Trabalho final desenvolvido para o Curso de Gestores em Educação da Universidade Estadual de Campinas e Secretaria da Educação de São Paulo, sob a orientação do componente curricular O Cotidiano da Escola.






CAMPINAS
Janeiro 2007



SUMÁRIO:


I. Introdução: A importância de um memorial reflexivo; justificativas indispensáveis-------------------------------------------------------------------------4

II. O início da carreira--------------------------------------------------------------------5

III. A contribuição da leitura no processo formativo--------------------------------10

IV. A Direção Escolar e a realização pessoal-----------------------------------------20

V. O ingresso na função supervisora--------------------------------------------------31

VI. Considerações finais-----------------------------------------------------------------39

































TRAJETÓRIA FORMATIVA: ESPAÇOS E TEMPOS DE FORMAÇÃO





I – Introdução: A importância de um memorial reflexivo; justificativas indispensáveis


Escrever este memorial me pareceu complicado. Falar de coisas do passado me envolve em sentimentos nostálgicos, porém, considerei a importância de estabelecer as relações que foram incorporadas na minha formação docente.
Os percursos formativos contemplam reflexões e análises enriquecedoras; atribuir a devida importância à cada fato e aos seus autores me pareceu justo: o ser humano deve primar pelo reconhecimento e lealdade.
Cada fase da vida e suas experiências foram decisivas e marcantes; alguns momentos ficaram mais vivos na memória, pelo impacto da descoberta. Descobrir e reinventar aspectos da natureza humana são ações fundamentais para estabelecer verdades comprometidas com a justiça e a solidariedade. Por esta razão, em um primeiro momento, dedico este trabalho aos meus pais, especialmente à minha mãe: minha formação educacional começou quando ela decidiu que as filhas também estudariam.
A decisão de minha mãe foi uma decisão imperativa, pois a princípio, só meu irmão iria estudar, em decorrência do aconselhamento de tio Benigno, e a decisão de meu pai de que apenas o filho homem estudaria. O Tio Benigno era um imigrante português, como meu pai, mas bastante atualizado e influenciou o destino cultural de minha vida e de meus irmãos.
A minha família, constituída de pais e dois irmãos, era limitada a poucos hábitos culturais e, com a entrada da Escola em nossas vidas, algumas coisas foram acontecendo: meu pai passou a interessar-se mais por noticiários, leituras e informações que trazíamos para casa e minha mãe encontrou um mundo novo de descobertas e novidades.
Estas informações são importantes porque quando nos distanciamos dos fatos, apresentamos dificuldades em perceber suas importâncias, passamos a ignorar seus significados e, assim, tornamo-nos desvinculados da gratidão aos outros nas nossas vidas.

II – O início da carreira

Meu desejo pela carreira, de fato, se iniciou quando apreciei o trabalho escolar dos professores que tive na infância e na adolescência. Naqueles momentos senti desejo de participar do processo educativo. Acho que uma carreira nasce assim: do desejo de participar e da esperança de contribuir com algo que floresça na vida humana.
A consolidação deste desejo se deu aos poucos, valorizando o trabalho de alguns mestres e iniciando o Curso de Licenciatura em Ciências e Biologia.
Não fui muito feliz neste curso, creio que ele pouco contribuiu com a minha formação, pois, ao ministrar aulas, logo em seguida, descobri que nada sabia e que tinha muito a melhorar na formação, que deveria ser contínua.
Por falta de recursos, fiz este primeiro curso na minha cidade natal, pois não havia a possibilidade de manter as custas em outro local.
As minhas aulas no Curso de Biologia foram precárias, poucas pesquisas, leituras fragmentadas e desinteresse de todos: alunos, professores e escola.
Creio que percebi a importância da formação contínua quando me deparei com os alunos na primeira escola que trabalhei. O susto foi grande ao perceber que o principal trunfo do professor ao ministrar aulas é a palavra; o poder da argumentação e a capacidade de produzir envolvimento. Tais habilidades são artefatos necessários ao bom relacionamento com os alunos e à aprovação do mestre.
Penso que a autoridade se conquista assim, com o domínio e o respeito a si próprio e ao outro. Das relações com o poder; desta época, tenho a lembrança do primeiro Diretor que tive: um senhor boníssimo que ficava me observando e sabia da minha inexperiência. Ele foi muito importante para mim, por ter sido compreensivo e possibilitado condições de trabalho, sem sobressaltos e angústias.
Eu era muito jovem e dependia dos colegas para as viagens em coletivos, que não tinham horários adequados; às vezes ficava sem transporte na cidadezinha, onde ministrava aulas em substituição e a solidariedade de um colega, em especial, é memorável, pois este intermediava as minhas vindas para casa com os conhecidos.
Depois desta etapa, mudei de Estado e, na experiência que tive em escola particular, acreditei que um mestre se faz pela experiência, pela formação adequada e pelo estudo permanente; fatores indispensáveis à prática de ensino. Isso foi muito interessante e traumático: aprendi que era muito limitada no processo formativo e que deveria continuar meus estudos em outras escolas.
Em Minas Gerais, trabalhei em um colégio particular e passava horas estudando e preparando aulas. A maior dificuldade era o espaço. Morava em uma pensão e mal podia transitar pela casa. As dificuldades foram muitas neste período: pessoas desconhecidas, fome, livros a serem devorados e alunos inquietos.
Não guardo lembranças agradáveis deste momento; lamentava não possuir maiores domínios de conhecimento; as horas de estudo tomavam todo meu tempo e não consegui formalizar estudos em outras escolas de curso superior.
Nesta ocasião, conheci um aspecto do outro; as pessoas se distanciam de nós quando preocupadas com a possibilidade de nos dedicar ajuda. As relações que vivi nesta época eram formais e vagas. Pouco sentimento de valorização humana acrescentei neste momento. Mas, comecei um bom trabalho e mais escolas me convidaram para ministrar aulas, porém, sentia desejo de conhecer outras pessoas, outros costumes e, assim, resolvi ir embora dali.
Novamente mudei e, em São Paulo, capital; trabalhei em um banco e ingressei em uma Escola de curso superior com grande estrutura e trabalho organizado, onde, nela, fiz um curso de química com muito sacrifício; viajava todas as noites, horas a fio, e por falta de recursos, ficava sem alimentação adequada. Foram anos de aprendizado, principalmente de como a estrutura da Universidade pode contribuir com a nossa produção. Aprendi, com meus mestres, que podemos ser honestos e rigorosos sendo educadores com conhecimento e dedicação.
Muitas pessoas contribuíram comigo nesta época: amigos de classe, amigos de “república”, com tolerância e compreensão. A eles devo parte do meu curso e, a eles, dedico na minha memória, agradecimentos sem fim.
Nesta fase da vida, então, em contrapartida, pessoas extraordinárias contribuíram com a minha formação humana. Foram pessoas que acreditaram em mim, que me ajudaram em muitas dificuldades, e são inesquecíveis; delas guardo lembranças, costumes e penso como Arroyo: “Nem tudo o que somos nos pertence, somos o que resultamos de tudo. Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.” (ARROYO, 2000, p. 36).
Em São Paulo vivi uma rica experiência educativa. Conheci escolas da periferia; em uma delas fiquei por dez anos, passei por um aprendizado humano extraordinário e por ser muito jovem não sabia avaliar a dimensão desta experiência. Hoje, analiso que ela contribuiu muito para minha vida profissional. Aprendi a diversidade social em toda a sua dimensão, a questão da multicultura e suas vertentes, da eqüidade tão necessária e, enfim, da natureza humana e suas limitações.
O que trouxe daquele momento foi como organizar minha prática, como preparar minhas aulas, como avaliar o conhecimento adquirido pelo aluno e por mim. Consegui ser muito organizada, mas ainda muito inflexível, autoritária e “mandona”. Dos meus alunos, nesse tempo, guardo recordações tristes: eram de olhos suplicantes, cansados e requerendo mais ouvidos às lições de biologia ou química.
O currículo formalizado neste período era o estabelecido pela Lei 5692/71 que organizava estudos de cultura geral básica, educação para o trabalho e diretrizes para os ensinos de 1º e 2º Graus; o que possibilitava a fragmentação curricular em diferentes habilidades específicas.
Como herança dos acordos MEC/USAID, firmados nos anos do “milagre econômico” e patrocinado pelo regime militar, eu ainda utilizava o material de implementação dos Guias Curriculares Nacionais (1977), os quais enfatizavam uma postura essencialmente técnica de ensino.
O trabalho pedagógico que eu desenvolvia era orientado pela Direção e Coordenação escolar, que organizavam reuniões aos sábados, no final dos bimestres. As pautas das reuniões frequentemente tratavam de assuntos gerais e pouco se divulgavam os trabalhos dos teóricos nacionais.
Reconheço que sempre fui uma pessoa de personalidade difícil, porém, ao conhecer a realidade de meus alunos e, ao identificar-me com eles, trabalhei incansavelmente, dei o melhor de mim, dentro das minhas limitações: preparava aulas, experiências e leituras interessantes. Fazia das minhas aulas um mis-en-scene para motivar os alunos. Pedia trabalhos de processos práticos, visitas em museus, entrevistas, enfim, tudo o que os afastasse da rotina das paredes escolares.
Foi muito boa esta fase; aprendi com a Diretora da Escola, que era muito eficiente; como planejar reuniões; cerimoniais e, também a apreciar o trabalho das pessoas. Foi prazeroso e emancipador.
A partir deste momento, avaliei a importância de um educador. Ao estabelecer análises, comparações e sínteses contemplativas, defini o ideal de contribuir com o destino dos outros.
Meus alunos tinham baixa estima; o bairro, espaço limitado de suas vidas, era extremamente violento. As páginas policiais registravam homicídios continuamente ocorridos naquele local. Presenciei algumas vezes a fuga de moradores perseguidos pela polícia; em uma das vezes, dois rapazes que fugiam se esconderam na escola. Passamos momentos de pavor; a viatura policial adentrou a escola e, aos gritos, os policiais, armados, nos obrigaram a ficar sob as mesas da sala dos professores. Ainda hoje não sei de quem tive mais medo.
Os alunos viviam assim, dominados pelo medo, angústia, drogas, pobreza e, como se fosse para completar o quadro, um córrego malcheiroso, com esgoto a céu aberto, circundava o bairro, tornando os dias e as noites tristes para todos nós.
Por ser jovem e idealista, me movia de esperanças e passava aos alunos a crença de que, se acreditassem e lutassem, poderiam ter dias melhores.
Amargas as lembranças de alguns alunos: um que eu não soube motivar e se indispôs comigo. Em seguida, após violenta briga, deixou a escola. O outro que eu não soube conquistar e, anos depois, morreu afogado.
A mais marcante lembrança foi a de um aluno negro, marginal e marginalizado; fiz deste aluno um exemplar estudante, que lia muito, discutia os assuntos comigo e tinha esperanças de mudar de vida. Algum tempo depois descobri que o melhor emprego que ele arrumara era o de carregador de caixas para o mercado. Foi triste.
A memória compensatória desta época, no entanto, foi a de um outro aluno que, passados alguns anos, me procurou para dizer, com muito carinho, que estava fazendo o Curso de Física na Universidade de São Paulo e que optaria por estudar Física Nuclear. Para mim, tudo que sofri foi esquecido naquele momento.
Nesta Escola aprendi também o que eram Assembléias, reuniões paritárias e Conselhos Escolares. Neste período, participei das mobilizações do professorado naqueles grandes movimentos da década de 80. Tudo isto sem grandes experiências, executando as ações aos sobressaltos e aprendendo com os colegas da Escola.

III – A contribuição da leitura no processo formativo

Assim trabalhando e, na prática aprendendo, prestei o concurso para a docência junto à Secretaria Municipal e então, me encantei com a bibliografia.
Apreciei os escritos de Luckesi (1984), Saviani (1981), Libâneo (1985) e Freire (1974), entre muitos outros, e sendo aprovada, ingressei no Sistema Municipal de Ensino, onde o rigor com papéis, dados e análises era muito maior do que na rede estadual. Foi então que comecei a trabalhar com a análise gráfica de resultados escolares. Isto foi muito marcante. Observei os resultados das avaliações sendo julgados em grupo. Achei ótimo.
Aprendi, então, a apreciar o desenvolvimento individual dos meus alunos e, aí, criei uma dinâmica inusitada de aulas: o aluno participava da docência e atraia os demais. Foi muito inquietante. As experiências e as contribuições dos alunos em feiras, seminários e exposições causavam grande desequilíbrio no grupo de professores, que não estava acostumado a este tipo de trabalho.
Com Saviani (1981) comecei a compreender as diferentes vertentes pedagógicas a partir das leituras de seus artigos publicados na Revista ANDE. A pedagogia tradicional, que era a mais praticada nas Escolas, foi se desvelando aos meus olhos e pude compreender a importância de novas práticas e das leituras concebidas a partir delas.
Percebi também com estas idéias, que a pedagogia da Escola Nova provocara mais rebaixamento do nível de ensino do que benefício, e a pedagogia tecnicista, muito empregada nas escolas que eu conhecia, rotulava os diferentes atores em ineficientes quando estes não tinham um bom desempenho.
Ao descobrir as teorias crítico-reprodutivas me espantei. As novidades eram extraordinárias: imaginar a Escola como um aparelho ideológico do Estado foi surpreendente. Daí, não houve mais volta; passei a acreditar e creio ainda em Althusser:
[...] é através da aprendizagem de alguns saberes práticos (savoir-faire) envolvidos na inculcação massiva da ideologia da classe dominante, que são em grande parte reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista, isto é, as relações de explorados com exploradores e de exploradores com explorados (ALTHUSSER, s/d, p. 66).


Para completar esta análise crítica, Paulo Freire e seus estudos contribuíram com as noções da educação bancária e da figura do aluno oprimido:
[...]dualidade dos oprimidos, seres duais, contraditórios, divididos e que temos de encará-los. A situação de opressão em que se “formam”, em que se “realizam” sua existência, os constitui nesta dualidade, na qual se encontram proibidos de ser (FREIRE, 1987, p. 42).

Concebi com perplexidade as constatações de Paulo Freire e fui incorporando na minha formação estas novas concepções de educação.
A educação vista sob o ponto de vista do que se educa; a opressão da ideologia imposta, a violência da exploração de pessoas: mestres e alunos.
Pensei, neste momento, tudo que havia vivido até então: minha infância pobre e limitada; as dificuldades financeiras da família, as diversas vezes que fora discriminada por pessoas e professores, em decorrência do bairro em que morava e da posição social que ocupava. Pensei na violência dos que detêm o poder e contribuem com a desvalorização do outro. Ao ignorar os talentos dos alunos; ao conceber extrema importância às aparências, em detrimento dos valores e conhecimentos, os que detêm o poder criam mecanismos de exclusão.
Refleti sobre o que já havia passado e constatei as forças de exclusão social que me induziam a não crer nas minhas possibilidades e enxerguei o imobilismo das minhas práticas. Comecei a praticar as lições da Pedagogia a partir daí.
E fui estudando para entender o quanto a minha prática carecia de acertos e progressos. Na verdade, as primeiras noções acerca da violência aplicada pelos que detêm o poder foram decisivas para uma avaliação das relações que já vivera e das condições democráticas do país, que limitavam os direitos da população excluída. A grande massa trabalhadora estava a serviço dos detentores dos privilégios e manuseá-la serviria, então, para ampliar o poder de aquisição de lucros e impostos.
Com Guiomar Namo de Mello, que foi Secretária Municipal da Educação, em São Paulo, no período que ingressei na Secretaria Municipal de Educação, aprendi a importância do compromisso do “saber fazer” aquilo que o bom senso aponta como necessário (MELLO, 1987, p. 145). Sempre acreditei na importância do conhecimento e das habilidades para a prática pedagógica, no entanto, não tinha firmeza nesta argumentação, daí a importância desta leitura. Este saber fazer, segundo a autora, é a competência técnica:
[...] que poderia ser objetivada em termos do domínio do conteúdo do saber escolar e dos métodos adequados para transmitir esse conteúdo do saber escolar a crianças que não apresentam as precondições idealmente estabelecidas para sua aprendizagem. (MELLO, 1987, p. 145).

Assim, por decorrência desta análise e após mais leituras, me envolvi com a tendência “crítico-social dos conteúdos”, propagada por José Carlos Libâneo (1985), Mello (1987) e Saviani (1986) que priorizavam, essencialmente, a “valorização dos conteúdos” e a “natureza específica da educação”.
Segundo esta tendência, a democratização necessária, dentro das escolas, deveria ser possibilitada pela prática social e pela especificidade da prática política da educação:
A função política da educação se cumpre na medida em que ela se realiza enquanto prática especificamente pedagógica [...]
A importância política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento. É, pois, realizando-se na especificidade que lhe é própria, que a educação cumpre sua função política. (SAVIANI, 1986, pp. 92,93)

Desta maneira, passei a encarar a educação de uma forma mais responsável e acreditar que, além da prática da solidariedade, deveria sair da ingenuidade ideológica, o que considero como prática cega de tentativas e erros, e assumir a responsabilidade de educar para algo mais consistente; assim, comecei a acreditar com firmeza na ação política das práticas educativas.
Desta leitura, passei aos estudos de Neidson Rodrigues (1984) e, pela crença no discurso por ele desencadeado, formulei novos questionamentos acerca do meu trabalho:
O intelectual filosófico não precisa ser capaz de converter consciências multiformes e variadas em uniformes e unitárias. Mas seu trabalho deve contribuir para que, pelo questionamento da visão e do visto do desejo e do desejado, da sensação e do sentido, os homens possam reencontrar a si mesmos, à sua conformação histórica e à sua capacidade de agir. Sem tais questionamentos e reposição das posições é impossível compreender a situação e transformá-la (RODRIGUES, 1984, p. 16).

Contribuir com a transformação da realidade passou a ser o meu dilema pedagógico e, em todas as atividades que programava nas aulas, pensava sempre em quais mudanças poderia provocar no desenvolvimento pessoal dos meus alunos.
Na busca de soluções, deparei-me com as idéias de Luckesi (1984) e vislumbrei os caminhos para as transformações necessárias na minha relação diária com os alunos e no meu próprio processo educativo.
Segundo este autor, a pedagogia para a transformação deve centrar-se no ser humano como ser político, que na coletividade, deve ter direito de participar de bens sociais e econômicos e ter envolvimento ideológico e participação social, uma vez que a educação não é neutra.
A relação entre mestre e aluno, por sua vez, deve ser democrática, sendo a autoridade do educador proveniente da competência estabelecida por ele. A autonomia e a reciprocidade dar-se-ão mediante a aquisição dos conhecimentos acumulados e pela possibilidade de produzir novos conhecimentos a partir de situações estimulantes.
Fiquei muito envolvida com as idéias de Luckesi e comecei a praticá-las nas aulas, de maneira a produzir com os meus alunos, atividades que os levassem à questionamentos e propostas de soluções.
O meu ponto de vista foi mudando à medida que, da consciência ingênua inicial, despontavam críticas, questionamentos e análises desafiadoras. Passei a enxergar a Educação sob um aspecto crucial: da necessidade de cada educador contribuir com a formação cidadã dos alunos, evidenciando suas necessidades e direitos e propondo a reivindicação quando necessário.
Com Fusari (1984) melhorei a minha prática de planejamento, a qual passou a ser mais organizada. Os registros foram melhorados gradativamente e minhas anotações eram ricas em análises das aprendizagens dos alunos.
Descobri a mediação ainda nesta época; meus alunos com mais dificuldades foram se sobressaindo e propondo questionamentos interessantes. Uma experiência muito grata que tive neste período foi participar da Assembléia organizada por Paulo Freire, quando este era Secretário Municipal da Educação em São Paulo. Freire reuniu os professores municipais neste encontro e calmamente conversou com todos. Eu me indignei com a multidão que fazia muito barulho, mas ele não se exaltava; mostrou a importância de se fazer ouvir sem preocupações com a figura de autoridade que representava. Demonstrou que o poder pode ser conduzido com sabedoria e com humildade.
Porém, não ficou muito tempo na Secretaria da Educação Municipal. Suas idéias eram muito progressistas para uma rede medíocre preocupada com os dilemas de retenção do aluno.
Com um processo de formação em andamento, me apropriei de coragem e, em seguida, realizei mais dois concursos públicos e ficando motivada pelos estudos, comecei o curso de Pedagogia.
Na faculdade onde cursei Pedagogia não aprendi muito. Era tudo muito chato e as aulas cansativas. Desta época, lembro-me que o livro recomendado sobre administração escolar era muito tradicional e tínhamos apenas duas professoras trabalhando com autores mais recentes. O curso serviu para que eu prestasse o concurso para Diretora de Escola e o fiz com bibliografia exaustiva, sem muito pensar porque queria ser diretora. Mas fui. E foi o melhor de minha carreira até agora.
Nas aulas de administração escolar na Universidade onde cursei Pedagogia, aprendi acerca das relações implícitas no sistema de poder, quando, pela primeira vez, analisei as articulações que um diretor deve fazer com a comunidade e as formas democráticas de gerenciamento de problemas.
Segundo Kimbrough (1978) “A política eficaz é o exercício da habilidade política e refere-se ao processo da tomada de decisões significativas na democracia”. (KIMBROUGH, 1978, p. 81).
A partir desta premissa, compreendi que, o educador que está investido no poder de liderança, e consequentemente tem o potencial de influenciar as pessoas, deve proceder de forma democrática na condução dos trabalhos de maneira, ainda, segundo Kimbrough (1978), a “tornar-se, com o auxílio de outros líderes educacionais e leigos, um político astuto que visa o progresso educacional”.
No mesmo curso retomei o significado de “educação como um momento do processo de humanização” (GADOTTI, 1987, p. 26).
Walter Esteves Garcia (1984, pp. 5-8) preocupava-se com os “desafios da educação brasileira” e aclamava a união dos educadores. Em análise reflexiva das idéias do autor, na busca de exemplos nacionais, neste curso, retomei a escrita de Paulo Freire (1974) e a acreditar que a educação pode conduzir à participação e organização das pessoas, através da formação da consciência crítica, de cada um, articulada à prática transformadora.
Freire propõe o diálogo crítico, sem opressão, com amor, esperança, e confiança, partindo-se da vivência do aluno e do método atrelado à prática, portanto, a pedagogia estabelecida por Paulo Freire é a “pedagogia libertadora” que permite a transformação social e a libertação do oprimido.
Com estes estudos, portanto, passei a crer na “luta de classes” e na possibilidade de redenção dos desfavorecidos socialmente.
Pensei muito. Foi uma época de crença na educação como possibilidade de democratizar o país, vencer os desafios e, através do conhecimento, ampliar as mudanças necessárias na vida dos alunos e na minha própria vida.
Considerações um pouco ingênuas: as resistências eram grandes, o mercado de trabalho restrito. Trabalhava muito para conseguir pagar minhas despesas; mal sobrava tempo para leituras e busca de novos cursos. Como ajudar os alunos nesta pobreza de circunstâncias?
Foi quando prestei o Concurso para Direção Escolar da Secretaria do Estado da Educação de São Paulo; estava grávida do meu primeiro filho e me lembro de sentar-me ao chão e fazer as leituras da bibliografia acomodando conforme dava os materiais em uma mesa baixa.
Foi mais difícil adaptar-me às idéias daquela bibliografia: muita legislação, muitos textos técnicos de organização de sistemas escolares e autores de escrita complexa, fechada; leituras extensas, enfadonhas, e pouca possibilidade de transgressão; esbocei, aí, o perfil do diretor: um sujeito comprometido com as políticas do governo, não com os educadores, mais preocupado com números e registros à qualidade.
Por estas razões alguns autores marcaram as minhas lembranças: Maurício Tratgtenberg (1985, pp. 40-45) contribuiu significativamente com meus questionamentos a partir de suas análises desenvolvidas acerca da proletarização do docente:
No seu processo de trabalho, o professor é submetido a uma situação idêntica à do proletário, na medida em que a classe dominante procura associar educação ao trabalho, acentuando a responsabilidade social do professor e de seu papel como guardião do sistema (TRAGTENBERG, 1985, pp. 40-45).

Ou seja, mais responsabilidades se atribuem ao professor ignorando suas próprias necessidades culturais e sociais. É o que eu estava sentindo como profissional/pessoa; um misto de oprimido e opressor.
Uma proposta para a possibilidade de desvincular saber e poder, nas escolas, seria, segundo o autor, a criação de estruturas de organização horizontais, com a formação de uma comunidade real. A democratização escolar surgiria de modelos de autogestão de professores, alunos e funcionários.
Apesar de refletir sobre o texto e ficar impressionada, me perguntava sempre se um dia o país poderia implantar a participação coletiva em todos os níveis de ensino.
Outra idéia que influenciou o meu processo formativo foi a de Beisiegel (1980, p. 49) ao problematizar as críticas ao processo de democratização do ensino regular. Segundo este autor, o pensamento dos críticos à democratização era conservador, pois estabelecia que a qualidade de ensino houvesse se deteriorado em função da expansão das vagas aos alunos das classes populares.
[...] mas para mim o problema central é esse: é possível aceitar a democratização do ensino. Quem defende a democratização do ensino não pode recusar, não pode criticar a qualidade do aluno da nossa escola. O rendimento precário da nossa escola é um dado da nossa realidade social. Não podemos mudar a população: não dá, a nossa população é essa. Precisamos fazer com que a escola passe a responder a essa população. Esse é o ponto (BEISIEGEL, 1980, p. 56).

A partir daí que comecei a estabelecer relações entre os críticos e os excludentes, uma vez que ao associar o atendimento da demanda popular à baixa qualidade de ensino, os defensores da qualidade promoviam a exclusão. Assim, enxerguei em meus alunos e na minha figura de professora, seres excluídos pelas políticas governamentais e sociedade civil. Nas relações que eram possíveis de serem efetuadas, além do limite escolar, percebia o preconceito e a descrença das pessoas acerca do ensino público.
Nos estudos efetuados sobre a História da Educação no Brasil, Romanelli (1986, p. 29) me fez entender como as estruturas do poder estabelecem a organização do ensino. Para a autora, a evolução da educação escolar se organiza para atender “os interesses das camadas representadas na estrutura do poder”.
[...] é sempre inevitável que as diretrizes realmente assumidas pela educação escolar favoreçam mais as camadas sociais detentoras de maior representação política nessa estrutura. Afinal, quem legisla, sempre o faz segundo uma escala de valores próprios da camada a que pertence, ou seja, segundo uma forma de encarar o contexto e a educação [...]. (ROMANELLI, 1986, p. 29).

Em decorrência da compreensão ao entendimento da autora acerca das formas de controle social estabelecidas pelas estruturas de poder político, incorporei a prática de analisar as intenções dos discursos dos governantes. Sempre me perguntava ao ouvir a fala dos secretários, governadores, representantes da categoria, enfim, qualquer liderança política, quais seriam as suas intenções.
Minha conclusão sempre beirava ao fatalismo: querem pobres professores cuidando de pobres alunos em um ciclo eterno de pobreza.
Eu não tinha conclusões muito favoráveis, pois, pregava a esperança aos alunos, mas para sobreviver e trabalhar mais próximo de casa enfrentei trens de subúrbios, ônibus em horário de pico, várias conduções para chegar ao destino: escolas com professores despreparados, desmotivados e alunos sem perspectiva de progresso.
Enfim, entender as causas das precariedades do ensino não foi tão difícil como vivê-las.
Com um cenário realista e precário, conheci as idéias de Paro (1987) e enxerguei alguma importância no conceito de administrador escolar ao ler sobre a força da ação do educador:
[...] a educação poderá contribuir para a transformação social, na medida em que for capaz de servir de instrumento em poder dos grupos sociais dominados em seu esforço de superação da atual sociedade de classes. Desta forma, a questão da educação enquanto fator de transformação social inscreve-se no contexto mais amplo do problema das relações entre educação e política (PARO 1987, p. 103).

Logo em seguida, passei nas provas do Concurso Público para Diretor de Escola do Estado de São Paulo e, por razões de segurança e melhores condições de vida para a família, escolhi o cargo em uma cidade próxima da que eu nascera e iniciei os trabalhos na Direção Escolar.

IV – A Direção Escolar e a Realização pessoal

Ingressei como diretora de escola em um município que tinha a comunidade muito participativa e foi a alegria da minha vida: muita atividade, muita experiência, muita dificuldade, mas, descobri a vocação. Eu nascera para aquilo. Pensei.
Para o planejamento na escola, lembro-me que recorri à memória e aproveitei a experiência da diretora que tivera em São Paulo; reuniões de estudo, conselhos de classe minuciosos, participação do conselho de escola, atividades para a comunidade e incondicional participação da Associação de Pais e Mestres no gerenciamento financeiro da Escola, em um processo caracterizado por etapas intuitivas.
Planejei a partir da identificação dos problemas; estabeleci metas para executar e trabalhei diferentes alternativas. Decidi muitas escolhas e procurei controlar e avaliar o geral da Escola, estabelecendo a organização do trabalho. Foi um envolvimento extraordinário em minha vida; não conseguia separar o pessoal e o profissional; as dúvidas eram muitas; não havia respostas nas teorias e a prática é o que passou a dar sentido às minhas experiências.
As maiores dificuldades eram administrar o gerenciamento das ações cotidianas. O cotidiano escolar é diversificado em suas possibilidades e os dilemas são intensos: cuidar das contas escolares sem informação, verificar merenda, prédio, transtornos de relação professor/aluno, trabalhar as diferentes vertentes culturais e formativas, envolver a comunidade, enfim, organizar o coletivo e proporcionar atendimento individualizado aos envolvidos.
Mas, o que foi crucial e instigante, nestas experiências; do que mais me recordo, foi trabalhar com o processo de alfabetização sem experiência docente. As noções que eu tinha de alfabetização eram oriundas de um curso denominado Projeto IPE, promovido pela Secretaria do Estado da Educação. Fizera esse curso em São Paulo, nos anos iniciais da carreira. As experiências compartilhadas neste curso e as leituras de revistas eram tudo o que constituía o meu conhecimento sobre alfabetizar; desta maneira comecei um novo momento na minha vida profissional e, acompanhar e orientar o processo de alfabetização, sem o conhecimento da prática, foi inusitado. Estudei e observei muito para entender as considerações dos professores e as dificuldades dos alunos.
Nesta primeira Escola que administrei, a equipe era muito dinâmica e atuação de todos era muito movimentada, em pouco tempo, reformulamos a organização pedagógica escolar e o prédio foi remodelado com o auxílio de toda a comunidade.
Outras questões técnicas eram também desafiadoras: execução de pagamentos; controle de gastos; rendimento dos alunos e, ainda, encarar os resultados escolares eram os compromissos que mais me causavam medo.
Pela localização da escola distar muito de casa, optei por remover o cargo de Direção para outra escola mais próxima e, então, em seguida, me removi para uma escola um pouco triste, com a comunidade um tanto apática e, tentar demovê-la desta condição, foi a minha tarefa mais desafiante.
Com pouco tempo, houve progressos observados em mim e na escola, mas, eu não era feliz, pois, a movimentação local não surtia o efeito por mim desejado; por mais que me motivasse não conseguia me adaptar àquele local. Mas aprendi muito. O processo de alfabetização e suas dimensões nunca foram tão estudados por mim como naquela época. Foi sem dúvida muito importante planejar os caminhos da alfabetização naquela escola, pois com os estudos programados e as experiências postas em prática, evidenciei os percursos da alfabetização para o coletivo e para o individual.
As propostas de leitura, nesta época, eram as de Telma Weiz (1990, p. 39), que conduzia trabalhos de alfabetização em São Paulo, para a Rede Estadual. Neste ano conheci melhor os escritos de Madalena Freire (1990, p. 15) e suas experiências na Escola da Vila Helena, em São Paulo.
Weiz (1990, p. 39) inspirava-se na psicogênese da língua escrita de Emilia Ferreiro e Ana Teberoski (Apud Weiz) e na teoria proposta de prática construtivista/interacionista.
Os estudos que eu fizera acerca do construtivismo eram fundamentados em revistas do sul do país, assim, estudar e propor atividades construtivistas com a equipe passou a ser um exercício formativo constante na minha carreira.
Entusiasmada com as novidades e estimulada pelas práticas e resultados, em um período de recesso escolar, participei do curso Construtivismo em Revista, desenvolvido pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação da Secretaria do Estado da Educação de São Paulo.
Na oportunidade, estudei os textos divulgados no curso e, dentre as considerações, algumas foram fundamentais para a minha compreensão da aplicação do construtivismo na escola.
Em Becker (1992, p. 4) encontrei uma definição de construtivismo bastante elucidativa [...] “construtivismo não é uma prática, não é uma forma de aprendizagem, não é um projeto escolar, mas uma teoria que permite reinterpretar todas essas coisas”[...].
Em outra análise, sobre a ação construtivista, Leite (1992, p. 9) trouxe à luz de suas análises a solução de dúvidas que me assolavam acerca da questão do conflito sócio-cognitivo infantil, que era objeto de dificuldade de trabalho na escola. Entender que o conflito era desencadeado por interações estimuladoras foi importante para mim.
Para a autora, as interações podem estabelecer certas situações de conflitos que possibilitam novas cognições:
As interações sociais não são em si mesmas geradoras de novos sistemas ou formas de conhecimentos, mas podem suscitar certas situações de conflito que, por sua vez, podem dar lugar a novas estruturações cognitivas. É nesse sentido que as interações sociais não são constitutivas em si mesmas, mas constitutivas do processo de equilibração (LEITE, 1992, p. 9).

Nesta Escola, também aprendi a apreciar o espírito infantil, que me assustava. Tinha receio de não acertar. Penava sentimentos de insatisfação constantes com tanta desigualdade social e desajustes observados naquela comunidade.
As experiências que vivi, acompanhando o destino de alguns alunos naquela escola, me entristeceram e me tornavam uma educadora mais preocupada com a educação.
Em seguida, passei pela terceira escola como diretora. Foi muito bom. Esta terceira escola era um sonho por mim idealizado. Até hoje não creio que tudo aconteceu.
O que vivi foi um misto de vida pessoal e profissional, explicado por Arroyo:
Poucos trabalhos se identificam tanto com a totalidade da vida pessoal. Os tempos de escola invadem todos os outros tempos. Levamos para casa as provas e os cadernos, o material didático e a preparação das aulas. Carregamos angústias e sonhos da escola para casa e da casa para a escola. Não damos conta de separar esses tempos porque ser professoras e professoras faz parte da nossa vida pessoal. É o outro em nós. (ARROYO, 2002, p. 27).

O governo do Estado de São Paulo havia implantando o Projeto Escola Padrão e foi a melhor experiência pedagógica que pude apreciar na minha carreira. O projeto era espetacular (embora com uso de cunho político) e fundamentado: a escola tinha coordenadores de áreas, de alfabetização e de atividades culturais. Os recursos materiais e pedagógicos foram imensos e gerenciei a melhor fase da minha carreira: aprendi na prática, com o grupo, com as leituras e com os estudos que foram muito aproveitáveis. Melhorei meu entendimento de registros, de avaliação e de trabalho coletivo. Nesta época, estudei com afinco o processo de globalização e suas decorrências no emprego, no trabalho e, enfim, na vida escolar. Aprendi técnicas de organização do trabalho, estabelecendo metas, ações e procedimentos com registros, indicadores e avaliação.
Uma das leituras que a equipe desta escola utilizou como referencial foi o livro da autora Guiomar Namo Mello, Cidadania e Competitividade, desafios do terceiro milênio, com estudos e análises dos principais aspectos apontados por ela como essenciais à educação, no final do século; dentre os quais:
Qualificar a mão de obra com a inteligência e o conhecimento; qualificar a população para o exercício da cidadania; lidar com os novos parâmetros de difusão de conhecimento dados pela informática e meios da comunicação de massa; contribuir para recuperar/ construir a dimensão social e ética do desenvolvimento econômico; (MELLO, 2000, p. 33).

Assim, a escola estabeleceu diretrizes para o desenvolvimento da proposta pedagógica e, entre os principais pontos que fundamentavam o planejamento das ações, desta escola, destaco, conforme o Plano Diretor, 1995:
a) Conhecimento: função básica do ensino: currículo, objetivos, metodologia, avaliação e ações de curto prazo; b) eficiência: organização, gestão participativa e pedagógica e ações de curto prazo; c) qualificação para o trabalho: competitividade, capacitação, habilidades, incentivos e aprimoramentos; d) revalorização da ética e valores: análise do consumismo, a ação dos meios de comunicação, relações de interação social e formação de valores; e) cidadania: equidade social, solidariedade, engajamento cívico, capital social e qualificação da cidadania. (Plano Diretor, 1995)

Todas estas diretrizes destacaram um ousado trabalho pedagógico alinhavado com as idéias de Paulo Freire:

[...] é preciso ousar para dizer,cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com esta apenas. (FREIRE, 1993, p.10 )

A organização da escola era muito perfeita para ser verdadeira: ambiente pedagógico (salas de vídeo, de informática, auditório para reuniões, biblioteca atualizada e laboratórios), equipe comprometida e pais participativos.
Do que realizamos coletivamente, na ocasião, registrou-se muita coisa em jornais que circulavam pela escola. Criamos uma edição especial do jornal para prestar contas à comunidade e esta circulou dentre a população da cidade que muito a apreciou.
Pelos resultados da escola, recebemos a visita da Coordenadora do Ensino do Interior, e, na oportunidade, realizamos uma mostra de fotografias e trabalhos que registrava toda experiência vivenciada na escola.
Neste momento da minha carreira, conheci um professor coordenador, o professor Marcos Saruta, que passei a admirar pelos conhecimentos que tinha e pela humildade com que conduzia suas práticas. Aprendi muito com este professor e reconheço que devo muito a ele, por minha experiência e o sucesso da escola àquela época.
Da organização diária, posso garantir que os horários de trabalho coletivo passavam a ser de estudo sistematizado; os temas e autores eram separados por grupos e discutidos através de seminários e reflexões. Na execução da proposta pedagógica fazíamos a capacitação na prática; professores com mais experiência ofereciam cursos aos demais e discutiam-se as prioridades, sendo que, as maiores dificuldades eram trabalhadas pelo grupo. O professor João Cândido, habilitado em química, ministrava aulas de laboratório aos mestres e organizava um Clube de Ciências com os alunos. Este clube era movimentado pelos alunos interessados e protagonistas, pois, não era obrigatória a participação destes nos trabalhos.
Vivia um momento muito feliz na minha carreira, quando o sonho acabou com a reorganização das escolas, organizada pela Secretaria do Estado e, da escola ideal, acabei por ficar em uma escola pequena só com classes de 1ª à 4ª séries. E, foi a maior decepção que já pude sentir; nada foi levado em conta, reorganizou-se pela imperativa necessidade de cortar gastos, reduzir a rede e municipalizar parte do Ensino Fundamental. Um exemplo marcante da figura do neoliberalismo na educação. Um caos: fiquei recolhendo os cacos da escola, e então, pude perceber que o planejamento, se trabalhado nesta direção, pode ser cruel: cortar a própria crença, diminuir o sonho, recomeçar com uma circunstância empobrecida; mas, com muito realismo e tristeza, tomei a reorientação como minha melhor opção; para sofrer menos, e estabeleci uma reformulação:
Planejamento; identificação do que deve ser reformulado; [...] práticas de alterações; análise de desempenho e projeções; integração: estabelecimento de metas realistas; planos de ações para metas realistas; ação: implementação de ações realistas, [...](Plano Escolar, 1996).

Estudei com a nova equipe escolar toda análise da alfabetização no Brasil, no Estado, a situação da escola e passamos, então, pelo que se chama de reinventar tudo.
Esta ação de reformulação foi conjugada, também, às palavras de Paulo Freire (1993, p.10), para a ocasião: “é preciso ousar para ficar ou permanecer ensinando por longo tempo nas condições que conhecemos mal pagos, desrespeitados e resistindo ao risco de cair vencidos pelo cinismo”.
Em seguida, após esta desilusão, que me deixou doente; mudei de escola. Levei as experiências vivenciadas para uma escola de bairro, na cidade onde resido, e, foi um pouco árduo: o grupo desconhecia práticas de estudo, a professora coordenadora não tinha experiência de alfabetização e, enfim, apesar de me sentir útil, em uma comunidade com grandes carências de participação e envolvimento, me sentia com necessidade de viver novas experiências. Nesta escola, porém, a gestão escolar foi planejada a partir de “objetivos de estratégia e padrões de gestão: gestão pedagógica, formas de organização e objetivos de aprendizagem” (Plano Escolar, 1998). Desenvolvemos na Escola, então, processos de qualificação do grupo, da demanda e atividades de organização, direcionados por metas e executados por ações coletivas.
Esta linha de ação me foi possibilitada graças às leituras e pesquisas de Nóvoa (1999, p 187) sobre as organizações escolares.
Foi um ano de muito estudo dos Parâmetros Curriculares Nacionais e da Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). As experiências com a comunidade, neste ano, evidenciaram o sucesso da proposta pedagógica da escola e os resultados da ação coletiva começaram a aparecer.
No entanto, era infeliz. A tal “Escola de Cara Nova”, denominada pela Secretaria do Estado da Educação de São Paulo, não tinha nada de novo; os cursos ministrados eram com dinâmicas, como se não tivéssemos capacidade de entender o que já havíamos visto em outras leituras; o período escolar foi estendido aos alunos sem aparato pedagógico adequado: faltavam coordenadores, bibliotecários, funcionários e o número de horas de estudos dos professores fora diminuído. Uma lástima. Sem contar o medo da municipalização, que poderia, a qualquer momento, nos disponibilizar mudanças imprevisíveis.
Foi um período de sobressaltos e angústias, números e resultados eram o que mais importavam; o caráter humano das relações era velado por uma hipocrisia sem fim e os princípios regimentais de autonomia eram restritos e limitados ao desejo dos que governavam.
Assim, pensando em novas possibilidades, sentia desejo de mudar para outra escola onde pudesse trabalhar com outros níveis de ensino e diversificar minha prática.
E, então, fui para uma escola maior, que representava um desafio pela aceitação pública que ela tinha na comunidade e pelo número de alunos matriculados. Foi muito bom. Tive a experiência de trabalhar com um curso técnico e a escola, por ter uma equipe disciplinada e comprometida, atingia sucesso nos resultados escolares e em premiações.
Nesta escola, o plano de gestão foi organizado para quatro anos de trabalho e a linha de ação, prevista no planejamento, contemplava o estabelecimento das Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino médio e o conjunto destas definições doutrinárias sobre princípios e fundamentos, a serem observados na organização curricular e pedagógica da escola.
Os valores fundamentais ao interesse social e os que fortaleciam a solidariedade e a tolerância foram alicerçados em uma metodologia voltada para a contextualização e a interdisciplinaridade. Parece simples planejar esta ação, mas executá-la não é tão simples; requer uma movimentação extraordinária. E paciência, porque mudar não é fácil: “A existência dos saberes associados aos conhecimentos científicos e tecnológicos nos ajuda a caminhar pelos percursos da história, mas sua existência não significa que o real é esgotável e transparente”. (Parecer CEB/CNE 15/98, p. 59)
Por desejar contribuir com a formação dos alunos e professores, retomei aos estudos acerca da Globalização e seus percalços. Ao estudar Milton Campos (1999), compreendi que os cursos técnicos, da forma como eram propostos, bem como o currículo escolar, contribuíam para o que ele denominava “celeiro de deficientes” cívicos. Daí a importância da educação para assegurar “ideais de universalidade, igualdade e progresso”.
Santos propagava a construção da globalização mais humana em lugar da “perversa” que se verificava até então.
Os estudos que eu fizera sobre globalização eram decorrentes das idéias de Celso Furtado (1998), que restabeleciam as questões do “imperativo tecnológico”, a “crescente exclusão social” e a “concentração de renda”. Percebi, a esta altura de formação, a necessidade da atualização da carreira docente ao que se demonstrava iminente: a difusão tecnológica em grande escala e o seu aproveitamento na força de trabalho.
Concebi a tecnologia, pela primeira vez, como algo capaz de contribuir com o desenvolvimento humano se atrelada às concepções humanísticas.
No entanto, o que voltou a me emocionar, pelo prazer de conhecer uma escola de trabalho pedagógico ideal, foi a experiência no CEFAM, Centro de Estudos, Formação e Aperfeiçoamento do Magistério, para onde me removi.
O projeto pedagógico do CEFAM era muito prazeroso; as aulas de enriquecimento escolar eram muito satisfatórias pelas experiências que traziam aos alunos. Fui muito feliz nesta escola; lá conheci melhor o universo dos jovens, pude vivenciar mais os pensamentos e ações dos alunos, que eram protagonistas e questionadores, com argumento e prática.
O que gostaria de registrar desta experiência é a certeza de que um projeto bem estruturado, com equipe preparada e com respaldo do sistema educacional é, sem dúvida, garantia de que a educação apresenta excelentes resultados quando bem planejada e efetivamente praticada.
O melhor deste momento foi a prática de estabelecer relações essencialmente democráticas, pois, estas já eram um hábito na Escola: os alunos eram consultados sobre todos os temas pertinentes à escola e organizavam os eventos e ações de acordo com os próprios critérios de participação.
Foi muito interessante, porém, era um projeto do Governo Estadual que chegava ao final e eu, premeditando um apagar de luzes, me aventurei a estudar para o concurso de Supervisor Escolar.

V – O ingresso na função supervisora

A bibliografia do Concurso de Supervisor de Ensino do Estado de São Paulo foi tão extensa que pensei que o concurso seria um exercício para reprovar pessoas; na verdade, foi quase isto: questões dissertativas estúpidas e irrelevantes destinadas a expulsar candidatos.
Em decorrência da vasta literatura descobri idéias muito interessantes e conclui que, na prática, nada seria aplicado, pois, dificilmente um Governo estabelece medidas que venham contrariá-lo.
Porém, alguns autores me marcaram profundamente e, às vezes, os releio para continuar acreditando em alguma coisa.
Na supervisão, função que exerço hoje, com cargo efetivo e no município onde moro, poderia dizer que estou satisfeita, mas não seria verdade. Não estou gostando da experiência, talvez não do cargo, mas da maneira como as atribuições são definidas em nível de Estado. Fiquei decepcionada. Um supervisor poderia contribuir mais com pesquisas e estudos e, no entanto, executa trabalhos burocráticos e não participa das decisões. O trabalho fica então limitado a reiterar decisões já definidas.
A gestão e o planejamento das ações são burocráticos e as normas estabelecidas pela rede são controladas. Os técnicos que estão investidos no poder determinam as regras do que deve ser feito e os demais atores, dentre os quais supervisores, se encarregam de apoiar e controlar a execução.
O ambiente de trabalho, no ápice da carreira, é espantoso: quatro computadores para dez pessoas trabalharem; uma impressora que não funciona; um telefone com ramal e consulta bibliográfica nas oficinas e/ou na Internet. Vivemos um paradoxo: propaga-se o tecnológico em condições rudimentares de trabalho.
Porém, nem tudo está perdido. Se salva alguma coisa: através deste cargo pude participar do Programa de Capacitação denominado Ensino Médio em Rede e, através deste projeto educativo do Governo Estadual de São Paulo, concebi novos conceitos e estratégias para implementação das diretrizes curriculares do ensino médio.
O programa trabalhou a partir das idéias de Nóvoa (1995) e com os modelos de representações estabelecidas em pesquisas com alunos e professores da rede estadual de ensino. A partir do entendimento da questão do protagonismo juvenil; conceitos e práticas de projetos interdisciplinares e contextualizados foram estabelecidos nas escolas de ensino médio estaduais.
O trabalho por áreas de conhecimento curriculares, com propostas de aplicações dos conceitos de protagonismo juvenil, nas diferentes dimensões; do letramento e suas implicações nas atividades cidadãs; das seqüências didáticas e suas aplicações aos gêneros do discurso foram debatidos e aplicados nas escolas, através das estratégias de aprendizagens colaborativas, possibilitadas a partir dos meios eletrônicos disponíveis em videoconferências, fóruns na WEB, teleconferências e discussões em horários coletivos escolares.
Foi muito interessante realizar este curso porque melhorei as minhas relações com a informática e a tecnologia, de modo geral, pois tinha dificuldade de incorporar o computador à minha vida.
A partir da prática deste curso, fiz outros, de educação à distância; um da Universidade de Brasília, sobre conselhos escolares; outro da Pontifícia Universidade Católica sobre Tecnologias Educacionais e, ainda, um novo curso desta última universidade sobre Práticas de leitura e Escrita, a ser concluído, que me oportunizaram grandes progressos nas minhas limitadas formações acadêmica e eletrônica.
No ano em que passou fiz também o curso, efetuado pela rede estadual de ensino, denominado Progestão; um programa de formação para gestores estaduais que possibilita ao supervisor de ensino o acompanhamento geral da escola em todas as dimensões passíveis de gerenciamento.
Ainda no ano anterior, comecei o Curso de Especialização em Gestão Escolar na Universidade Estadual de Campinas, e isto só foi possível dada a parceria do Governo do Estado de São Paulo com esta Universidade.
Para mim, voltar à Universidade era um desejo muito grande; porém, a carreira, movimentada e atribulada de Diretor conjugada aos cuidados com a família, me impediam da dedicação necessária e fui adiando o retorno.
Quando comecei o curso fiquei um pouco estremecida, pois as minhas convicções sobre a Universidade ficaram abaladas.
Por acompanhar o feito dos professores pelos jornais, acreditava que a UNICAMP, tivesse um perfil mais aberto, flexível e inovador. Fiquei pasma: as primeiras impressões que tive foram decepcionantes: fomos vistos com preconceitos acerca das condições da escola básica pública e tratados com certa agressividade por alguns mestres; as relações entre aluno/universidade eram extremamente dificultosas e, enfim, alguns professores se reportavam à avaliação como um instrumento de corte; uma espada triunfal que arrancaria de nós, qualquer plano de intervenção na figura transcendental do professor; inabalável, em seu pedestal eterno. Uma lástima!
O currículo foi se organizando em disciplinas fragmentadas, onde um componente curricular não permitia que se discutisse a idéia do outro e uma enorme fogueira de vaidades pairava sobre nós. Então, fomos descobrindo, em alguns componentes, que ao aluno é permitido o mesmo em qualquer nível de ensino: aquietar-se, fechar a boca, não emitir juízo de valores porque a ameaça de retorno na avaliação é a recompensa aos que esbravejam.
Alguns professores nos explicaram que isto é autonomia!
Penso que a avaliação deve ser permitida a todos: deveríamos ter tido o direito de avaliar cada componente disciplinar após sua aplicação. No entanto, mesmo com esses choques de opiniões, recebi excelentes ensinamentos, alguns professores foram exemplares na organização do conteúdo, na escolha de textos, na dinâmica de aulas e na relação com o aluno.
Posso dizer que recebi de acréscimo a tudo o que já estudei: os mecanismos de pesquisa da história de instituição escolar; a análise da precarização da carreira docente; as novas tecnologias aplicadas ao ensino e a dinâmica da metodologia de seqüências didáticas de conteúdos praticadas em algumas disciplinas.
Dos conteúdos trabalhados nos diferentes componentes curriculares, incorporei alguns conceitos e conhecimentos a partir de vários autores. Em Planejamento e Avaliação descobri as idéias de Pochman (2006) que muito me agradou por demonstrar a ineficiência da educação para resolver a questão do mercado de trabalho.
Na disciplina Tecnologia da Informação e Comunicação foi nos apresentada a importância da tecnologia na construção de bibliotecas virtuais, os sites de pesquisas acerca de citações, referências, resenhas e roteiros de pesquisa e as várias propostas metodológicas de uso da tecnologia aplicada à educação.
Em Relações de Trabalho e Profissão Docente, gostei muito dos textos de Heloani (1999) sobre a ascensão do neoliberalismo e seus mecanismos de exclusão social; de Dowbor (2002) e sua análise do desemprego por desalento e, por fim, de Oliveira (2004) que descreveu as implicações da reestruturação do trabalho docente. No componente Gestão Escolar: abordagem histórica, fiquei encantada com o trabalho que desenvolvi a respeito da história da instituição escolar que escolhi.
Um componente agradável e interessante foi Escola, Gestão e Cultura que trabalhou textos de Bertrand Russell (1957) e de Mia Couto (s/d) objetivando atingir a sensibilidade e a reflexão sobre as ações desenvolvidas nas escolas.
De todos os componentes curriculares, porém, o que mais me chamou a atenção e motivou foi O cotidiano da Escola por expor as “feridas” que não são declaradas na escola: o preconceito, o racismo, a ignorância, a violência, a agressividade e a indiferença com que enxergamos tudo isso.
Para mim foi uma surpresa: encontrei respostas a muitas dúvidas do passado. Recordei alunos, mestres e uma infinidade de situações que presenciei, desde os meus próprios preconceitos até os das pessoas com quem convivi.
As atividades desenvolvidas foram desencadeadas por estratégias intrigantes como filmes selecionados, pesquisas com alunos, análise de imagens e relato de uma experiência escolar. A ação de associar os conteúdos às situações diárias da escola foi, sem dúvida, uma prática que proporcionou reflexões e pensamentos de análises consideráveis, para a ampliação de conhecimentos e entendimento de verdades.
A disciplina Cotidiano da Escola solicitou, ainda, a avaliação de seu desempenho aos alunos, fato admirável e possibilitado por poucos componentes.
Durante todo o curso, estive em todas as aulas presenciais na Universidade, e a responsabilidade das professoras deste componente curricular me impressionou o suficiente para registrar minha admiração.
Com Bagnato (2006) aprendi que “não há desculpas para flexibilizar aquilo que orienta e regulamenta a ética” e, em decorrência das explicações de Cruz (2006), entendi que, a partir das premissas foucaltidianas, os discursos constituem processos lingüísticos, que regidos com verdades estabelecidas pelo poder, são formas de regulação e de controle.
Estas duas orientações parecem responder aos questionamentos que venho desenvolvendo durante o exercício da minha prática: a ética não aceita desculpas; os discursos da verdade dos que usam o poder são controladores. Pareceu-me que esta disciplina veio, inesperadamente, propor as respostas que eu procurava.
Meu interesse pelos objetivos da disciplina foi ampliado com as leituras de Andrade (2004) e Souza et Gallo (2002) que estabeleceram análises filosóficas e instigantes sobre temas fundamentais na compreensão da relação humana.
As análises propostas por Andrade (2004) sobre o modelo de identidade definido pela escola e a decorrente exclusão associada a este referencial, desencadearam questionamentos e elucidações sobre a verdadeira natureza do trabalho escolar.
A questão de identidade se inseriu no contexto de marcação simbólica, por meio da qual damos sentido a práticas e relações sociais que delimitam grupos identitários como algo definido e definitivo. Assim vai se produzindo também a exclusão, a inclusão e as noções de cidadania que permeiam as relações escolares (ANDRADE, 2004, p. 7).

A autora demonstra a importância da estética da existência proposta por Foucault (apud Andrade, 2004) e, o significado desta compreensão ampliou no meu entendimento, a significação do benefício que proporcionam “cuidar de si” e do “outro”:
O cuidado de si - ou os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmo - aparece então como uma intensificação das relações sociais. [...] O cuidado de si aparece, portanto, intrinsecamente ligado a um “serviço de alma” que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas (FOUCAULT apud ANDRADE, 2004, p. 12).

Por outro lado, Souza et Gallo (2002), demonstram que o problema do “racismo do Estado” se inscreve no “deixar morrer”:
Na analítica foucaultiana, o racismo é o mecanismo pelo qual o Estado justifica seu direito de matar, numa sociedade biopolítica, fundada na afirmação da própria vida, uma vez que a eliminação do diferente, do menos dotado, do menos capaz, implica a purificação da raça, o melhoramento da população como um todo. A cada um que morre, o conjunto resultante é melhor que o anterior. (SOUZA et GALLO, 2002, p. 6).

As afirmativas do texto dos autores me fizeram entender muitas razões da violência, descaso e racismo que observei ao longo dos anos de minha carreira. O diferente sendo impelido ao “exercício do deixar morrer” para dar fim a uma incômoda diferença. Por esta razão, gostei da aclamação da verdade e da proposta estabelecida no texto sobre os caminhos alternativos a serem realizados.
Os autores propõem a luta contra o imobilismo; o convite à busca de “novas armas” (Deleuze apud Gallo et Souza, 2002, p. 12) e a “escapar ao controle”.
A estas idéias articulo as de Andrade (2004):
[...] a criação de novos contornos de si mesmo/a não resultam necessariamente na formação de sujeitos dóceis, mas antes daqueles capazes da tarefa da filosofia de fazer a guerra. (ANDRADE, 2004, p. 11).

A busca da própria identidade perpassa os caminhos da construção e cuidados de si e do outro. Ao estabelecermos o cuidado conosco e com o outro criamos vínculos capazes de restabelecer a compreensão das relações humanas. Ao delimitarmos nossos objetivos em não “deixar morrer” recuperamos nossa crença em nós mesmos.
A construção do eu será alicerçada, portanto, através da experiência de construção do outro. A este exercício podemos creditar ganhos de sabedoria e prazer. Por decorrência, quando necessário, para a “salvação da alma” deveremos executar a guerra, contra o que não se acredita; contra os interesses desvinculados de pessoas, enfim, da negação do eu estabelecido na relação com o outro.
Será um desafio a ser estendido à minha carreira de educadora incorporar as importâncias das constatações da verdade na reconstrução pessoal, da aceitação da existência do outro e da tarefa de contribuir com eficiência na arte da colaboração entre iguais.

VI – Considerações Finais:

As constantes reflexões que tenho feito no desenvolvimento do meu processo formativo me conduziram a uma análise crítica que permite considerar a importância da contínua vigilância que deverei praticar na busca dos ideais da verdadeira realização humana.
Em decorrência desta prerrogativa é fundamental considerar as experiências que vivi e seus valores nas realizações de procedimentos novos e atitudes desveladas de preconceitos, ações estas que serão de fundamental relevância na busca incansável pela verdadeira face humana.
Por assim dizer, considero a investigação da identidade humana um exercício estimulante, onde os cuidados da alma serão vigilantemente acompanhados e avaliados; com cautela, para não incorrermos em erros provocados por equívocos e armadilhas das falsas representações.
Desta maneira, proponho estabelecer minha prática através de um percurso ideal, permeado por constantes indagações: tomo os devidos cuidados nas minhas considerações e análises?Tenho evitado a arrogância dos que se sentem formados?Procuro alicerçar minha prática com sobriedade, respeito e sabedoria? Busco não ser ingênua? Penso na opinião do outro? Tiro proveito do que aprendi com meus mestres e pessoas admiradas?
Na verdade, tenho me esforçado para atingir um estado de reflexão antes de qualquer ação; sem, porém, perder de vista a indispensável arte de fazer a guerra quando necessária; pois, a “ escolha ético-político que devemos fazer a cada dia é determinar qual é o principal perigo”(FOUCAULT, 1995, p. 256 in Orientação de O Cotidiano da Escola). E são vários os perigos. O principal é o medo. O pior é a indiferença.
Tenho me esquivado das atitudes que possam prejudicar a minha prática e intervir nas minhas convicções acerca do ideal de pessoa que estabeleci: as pessoas são livres, únicas e contribuem com as outras através das diferentes identidades e desejos e, por esta razão, são indispensáveis.
Preservar e incorporar o que aprendi de útil nas minhas relações pessoais e de carreira; vencer o cinismo, a crueldade e a hipocrisia constantes dos que “deixam morrer”e excluem o diferente, e esquivar-me do “perigo” serão os principais objetivos para me “acompanhar todos os dias”(Orientação do Cotidiano da Escola, 2007).
Ao concluir este trabalho reitero a importância do fato de que compartilhar esta trajetória só me foi possível por acreditar que devo grande parte do que construí para mim, à contribuição do outro. Estender os sentimentos de gratidão aos que fizeram parte da minha vida profissional é questão de justiça e, por esta razão, concluo este trabalho com as palavras de Brandão:
Fomos um dia o que alguma educação nos fez. E estaremos sendo a cada momento de nossas vidas, o que fazemos com a educação que praticamos e o que os círculos de buscadores de saber com os quais nos envolvemos está continuamente criando em nós e fazendo conosco. (BRANDÂO Apud ANDRADE, 2004. p. 15).

Campinas, Janeiro de 2007.
Maria Aparecida Sanches Cardoso Neves
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